terça-feira, 5 de maio de 2020

4º DOMINGO DA PÁSCOA ANO A – DOMINGO DO BOM PASTOR


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At 2,14a.36-41
Salmo 23(22)
1Pd 2,20-25
Jo 10,1-10

A liturgia do 4º Domingo da Páscoa todos os anos se desenvolve em torno da figura do Pastor, que  no capítulo 10 de São João, Jesus identifica como sendo ele próprio. “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11). Assim sendo, o discurso sobre o Bom Pastor é dividido nos três anos litúrgicos A, B e C. Neste ano A é proposto o início de tal discurso.
Nos primeiros versículos, Jesus não chega a se identificar como o Bom Pastor, mas dá indicações sobre quem é e quem não é pastor, e se autointitula como a porta das ovelhas, pela qual deve-se entrar para ser salvo. Dessa forma, identificamos duas parábolas na perícope selecionada para este Domingo.
Jesus diz que o pastor entra no redil das ovelhas pela porta, as ovelhas ouvem sua voz e a conhecem, pois o pastor as chama pelo nome. Ao sair para o dia de trabalho, o pastor caminha à frente das ovelhas, guiando-as por caminhos seguros, onde encontrarão as condições para a vida plena.
Ao contrário, os ladrões e assaltantes não entram pela porta do redil, mas procuram as brechas para se infiltrar sem serem notados, a fim de roubar e matar as ovelhas. Jesus está dizendo a respeito dos fariseus e líderes judeus de seu tempo, com os quais ele havia discutido no capítulo anterior, após curar o cego de nascença. “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas dizeis: ‘Nós vemos!’ Vosso pecado permanece” (Jo 9,41). Diante do legalismo e hipocrisia de tais grupos, as ovelhas fogem. Procuram, ao contrário, Jesus, pois encontram nele Aquele que dá vida em abundância.
Após dizer que o pastor entra pela porta do aprisco, Jesus afirma “Eu sou a porta das ovelhas” (Jo 10,7). Acabamos de ouvir Jesus declarar que o pastor entra necessariamente pela porta. Quem entra por outros atalhos não é pastor. Jesus está dizendo que o pastor só é legítimo se passar por Ele. Passar por Jesus é a condição para se chegar às ovelhas. Essa é a condição para confiar a Simão Pedro o pastoreio de seu rebanho. “Simão, tu me amas?” (Jo 21,15-17) é a pergunta na beira do Mar da Galileia. Após a tríplice resposta do apóstolo é que o Senhor lhe confia seu povo. “Apascenta as minhas ovelhas”. Só declarando a perfeição do seu amor ao Mestre (três vezes) e após ouvir que o seguimento deverá ser até à morte, é que Pedro recebe o encargo de pastor. O pastor deve, por amor ao Mestre, aceitar ir até o fim, dar a vida pelas ovelhas.
Ao se identificar como pastor, Jesus usa uma expressão retomada várias vezes por São João em seu evangelho. “Eu sou”. “Eu sou a porta”. O autor do quarto evangelho apresenta Jesus afirmando “Eu sou a porta... eu sou o bom pastor... eu sou o pão da vida... eu sou a luz do mundo... eu sou a videira... eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida... eu sou a Ressurreição e a Vida”. “Eu sou” foi a resposta dada por Deus quando Moisés pergunta qual o nome que ele deveria dizer ao povo ao ser perguntado sobre a identidade de Deus.
Ao apresentar Jesus como “Eu sou a porta”, o autor do quarto evangelho quer mostrar mais uma vez à sua comunidade e aos povos de todo tempo que aquele Jesus é o verdadeiro Messias esperado por Israel, o Filho de Deus, o Eu sou. Assim, Jesus é o verdadeiro Pastor, as ovelhas pertencem a Ele,  ouvem sua voz e o seguem.
O papa emérito Bento XVI esclarece em sua trilogia “Jesus de Nazaré” o significado desta pertença. Ratzinger diz que a pertença das ovelhas ao pastor é uma pertença interior, muito mais profunda que possuir algo. Trata-se de conhecer-se mutuamente. Assim como os filhos não são propriedades dos pais, mas pertencem aos pais. Ou como os esposos, que não se possuem, mas pertencem um ao outro. A pertença requer responsabilidade, não domínio. O pastor não está lá para fazer riqueza com as ovelhas, nem para explorar as ovelhas, mas para cuidar das ovelhas, para zelar pela saúde, pela vida delas.
O pastoreio que Jesus assume e incumbe seus seguidores é, portanto, diferente do pastoreio dos líderes e governantes de Israel, denunciados pelos profetas, como Jeremias e Ezequiel. Entender a imagem do pastor no Antigo Testamento é a chave para entender a construção de João em seu evangelho. João escreve a partir da imagem de pastor reprovada pelos profetas. Vale a pena voltar a ela.
Em Ezequiel 34, o profeta escreve ao povo exilado na Babilônia. Nos primeiros versículos temos a reprovação aos chefes do povo pelos crimes cometidos. “Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos... Visto que meu rebanho é objeto de saque e serviu de presa a todos os animais do campo, por não ter pastor, pois que os meus pastores não se preocupam com o meu rebanho”.
Por conta de não fazer o que lhes compete, o profeta afirma que Deus vai lhes tirar o pastoreio e Ele próprio será o pastor do seu povo. Ele será um pastor que reconduzirá as ovelhas à sua terra, a pastagens irrigadas, onde elas poderão repousar; Ele será um pastor a buscar a ovelha perdida e a cuidar da machucada. (Ez 34, 11ss). Deus promete, então, um pastor a seu povo. Um pastor capaz de reconduzir Israel à paz e à justiça.
Brota no povo, portanto, a esperança de alguém que o governe para a vida em abundância, que não mais o explore, que não mais tire proveito do povo. Israel espera a vinda de um Messias. Espera que um dia surja um pastor como Deus. Esse é o esboço para o capítulo 10 do evangelho de São João, que apresenta Jesus como o cumprimento da expectativa do povo de Israel. Ele mesmo é o Pastor. “Eu sou o bom pastor”. Jesus é, portanto, o Messias esperado. Ele dá a paz na tarde pascal e também se denomina ser a Verdade. Ele tem, como podemos notar, os atributos do Messias, aquele que traz a paz e a justiça (verdade).
São Pedro, na segunda leitura, exorta a voltarmos nossa vida ao verdadeiro pastor. “Mortos para o pecado, vivamos para a justiça... andáveis como ovelhas desgarradas, mas voltastes ao pastor e guarda de nossas vidas” (1Pd 2,24-25).
Cabe duas perguntas para nós a partir da reflexão desta perícope do Bom Pastor. Como estão os pastores em nosso tempo? Entendemos como pastores o papa, os bispos e os padres, mas também cada pai e mãe de família, cada líder de comunidade, de pastorais e movimentos e cada líder, ainda que de um grupo pequeno de pessoas na sociedade.
Os governantes também devem ser pastores, como destacado pelo profeta Ezequiel. Infelizmente, a experiência com governantes no Brasil tem sido muito semelhante às do povo da Bíblia: pastores que se pastoreiam a si próprios, que portanto, não são pastores, mas mercenários, assaltantes, que maltratam e machucam as ovelhas.
Não nos esqueçamos, para chegar às ovelhas precisamos passar pela porta, que é Jesus. Esta é justamente a denúncia de Jesus no Evangelho de hoje: os líderes judeus usavam o nome de Deus em benefício próprio, hipocritamente, para explorar o povo. Aproximavam-se do povo de forma abusiva e, portanto, ilegítima.  Em outras palavras, não entram pela porta. Deus não autoriza seus pastores a explorar o povo.
Quando governantes e líderes religiosos, ou mesmo qualquer um de nós abusamos das ovelhas, não as tratamos como Jesus as trata, causa-se graves danos ao rebanho. O rebanho se assusta e foge, porque não os reconhece como pastores, pois o pastor vai sempre conduzir para a liberdade, para a segurança, representadas no Evangelho pelas verdes pastagens, para as águas repousantes, ou ainda, pela mesa posta bem à frente do inimigo, mas que pela proximidade do pastor, nenhum mal vai acontecer.
A outra pergunta é semelhante: como, então, identificar os verdadeiros pastores?
Primeiramente, pela coerência com o que Jesus ensina sobre pastoreio, a partir dos evangelhos. Também pela coerência entre fala e atitudes. Também identificamos ser um verdadeiro pastor quando conduz as ovelhas para a vida em abundância, com qualidade, com dignidade, quando é um servidor da vida. O verdadeiro pastor se mostra, ainda, próximo das ovelhas. Como diz o papa Francisco, o pastor tem o cheiro das ovelhas, isto é, tem contato e conhece suas ovelhas, respeita suas individualidades e suas características. Ou seja, as chama pelo nome.
Assim, da mesma forma que o pastor deve passar pela porta, que é Jesus, para ter acesso às ovelhas, o rebanho só encontrará a verdadeira liberdade e a vida em plenitude ao passar pela porta do curral, que é Jesus ressuscitado.  Portanto, Jesus é, Ele mesmo, a Porta, o Pastor e o Ccordeiro do sacrifício, que deu a vida livremente para que todos tivessem vida. Em Jesus, a salvação se realiza.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

2ª feira na Terceira Semana da Páscoa - Ver os sinais


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At 6, 8-15
Jo 6, 22-29

Desde sexta-feira a Igreja vem apresentando na sua liturgia diária o capítulo 6 de São João, cujo tema é o Pão, começando com o sinal da multiplicação dos pães, terminando com o instigante e famoso discurso em que Jesus se auto define como o Pão da vida, aquele que sacia para sempre, que garante a vida eterna.
São João não narra a instituição da Eucaristia na última ceia, com as palavras da instituição, como fazem os sinóticos. Em sua narrativa da ceia, João apresenta outros aspectos em longos quatro capítulos (entre os capítulos 13 e 17), como o lava-pés, o mandamento novo do amor, o discurso sobre a videira, a promessa do Espírito Santo e, por fim, a oração sacerdotal, em que pede ao Pai o dom da unidade. Ou seja, João apresenta em sua ceia desdobramentos da Eucaristia, consequências de uma vida eucarística.
João antecipa, porém, para o capítulo 6, o sinal do Pão, uma catequese profunda sobre a teologia da Eucaristia. Jesus se faz Pão doado à humanidade por amor, um sinal de sua morte na cruz e de sua ressurreição. Como vimos, o evangelista começa com a narrativa da multiplicação dos cinco pães e dois peixes, na qual Jesus sacia a fome da multidão.
Se na semana passada a liturgia nos apresentava as consequências do novo nascimento pelo Batismo, nesta terceira semana da Páscoa nos coloca diante dos olhos o outro sacramento base para o cristão, a Eucaristia. Batismo e Eucaristia são os dois principais sacramentos da Igreja, sacramentos pascais. Não nos esqueçamos, o Tempo Pascal é o tempo da mistagogia, quando os neófitos são convidados a mergulhar e viver o mistério que celebraram na última noite Pascal. Para nós já iniciados, cabe renovar a cada dia nossos compromissos cristãos e alimentá-los com esse Pão vivo descido dos céus.

O sinal do Pão... um olhar mais profundo
Para João, o gesto de Jesus é um sinal. Essa é uma característica de seu evangelho. Ele não fala em milagres, mas em sinais. O evangelista quer mostrar que é preciso olhar além do milagre em si, é preciso compreender seu aspecto mais amplo, sua mensagem, o que ele diz por trás do gesto de Jesus, que ensinamento nos traz hoje.
É justamente esse o motivo pelo qual Jesus repreende a multidão: “vocês não me procuram porque viram sinais, mas porque comeram os pães e ficaram saciados”. Eis a chave para ler todo este capítulo: enxergar os sinais que Jesus realiza. Jesus adverte que a multidão estava interessada coisas passageiras, em coisas materiais, voltada a si mesma.
Jesus identifica que aquela busca que faziam dele não era motivada pela fé, mas pela conveniência, pelos próprios interesses, como uma resposta aos próprios anseios. A pergunta que fica é: se Jesus não tivesse dado pães e matado a fome do povo, aquela multidão o teria procurado ainda assim? Com Jesus, ou se está ou não se está. Em Jesus, ou se crê ou não se crê.
Na semana passada já vimos a atitude de Nicodemos, que fora incapaz de se desapegar de sua vida velha e seguir Jesus com fé e radicalidade. Na verdade, estamos interessados em descobrir qual o mínimo a ser feito para ter as bênçãos, as curas, os milagres, os favores divinos. Procuramos a missa mais curta, o padre que fale menos, o jeito mais fácil de cumprir o preceito. Porque nossa mentalidade ainda está no que se tem que fazer, na norma, no que vou lucrar. Não se entra no espírito da norma ou do preceito.
Também vale refletir o que realmente buscamos quando procuramos o padre ou pregador que “opera milagres” à vista de todos. Ou o encontro onde a cura tem hora marcada para acontecer, ou que nos faça chorar, emocionar. As assembleias mais cheias serão sempre aquelas onde se promete bens imediatos. Faz-se da fé uma superstição. É tentar Deus, tentar aprisioná-lo.
Isso não quer dizer que Jesus não se interesse pelos problemas e preocupações das pessoas. Ele mesmo percebeu a fome da multidão e lhe deu de comer. Ele mesmo disse em outra passagem: “vinde a mim vós todos que estais cansados e fatigados por carregar pesados fardos e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e eu vos darei descanso”.
Mas Ele não dá um alimento passageiro. Ele nos alimenta com o Pão do Céu, o alimento que dura para a vida eterna, isto é, a fé. Assim, Jesus nos convida a entrar na lógica de Deus, a lógica do amor. Esta foi a dificuldade também dos discípulos de Emaús.
Durante a pandemia, corremos o risco de querer soluções rápidas, imediatas, queremos a vida de volta ao “normal”. Facilmente nos entediamos e talvez até nos revoltamos contra Deus, contra as pessoas. É a necessidade da negação, de encontrarmos culpados. De novo Jesus nos lembra que é preciso entrar na lógica de Deus, na lógica do amor.

O pão que não passa: crer no Filho do Homem
A pandemia tem nos mostrado como o mundo é frágil, efêmero. Talvez nosso grande desespero seja constatar que pusemos nossa confiança, nossos esforços, naquilo que passa, no dinheiro, na carreira, nas pessoas, ou seja, naquilo que alimenta o corpo, mas não a alma.
Outra dificuldade é perceber que aquele jeito de ser antigo, o homem velho, o mundo velho, não voltará tão rápido. É uma sensação de vazio. Jesus nos oferece então, de novo, uma resposta, uma saída, mas uma que não passa: crer no Filho do Homem. Crer em Jesus significa ser amado por Ele, descobrir-se amado, amá-lo e segui-lo.

domingo, 26 de abril de 2020

Os discípulos de Emaús - 3º Domingo da Páscoa – ano A


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At 2,14.22-33    
Caravaggio. A ceia em Emaús, 1601.

1Pd 1,17-21
Lc 24,13-35

No Terceiro Domingo da Páscoa a liturgia apresenta pela última vez neste tempo Pascal uma aparição do Ressuscitado. A partir do próximo domingo, bem como durante a semana, ouviremos o evangelho de São João, apresentando uma profunda teologia para mostrar como a comunidade deve viver a partir da Ressurreição de Jesus. Ou seja, como o Ressuscitado continua a agir na vida dos cristãos e como esses darão testemunho de seu Senhor.
A liturgia deste domingo apresenta o Mistério Pascal como cumprimento das Sagradas Escrituras. Vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus têm sentido à luz da Palavra de Deus.
Temos diante de nossos olhos o tão conhecido relato dos Discípulos de Emaús. Apesar de tão popular, sua narrativa é exclusiva de Lucas. Ele não é descrito por nenhum outro evangelista. É apenas mencionado no epílogo de são Marcos, que é um compêndio das aparições narradas pelos outros evangelistas.
O texto menciona que Emaús era um povoado localizado a 60 estádios de Jerusalém, ou seja, de 11 a 12 km da cidade. Os estudiosos afirmam que não se conhece esta localidade nessa distância. Conhece-se um lugarejo chamado Emaús-Nicópolis, porém distante de Jerusalém 160 estádios, aproximadamente 30 km – distância pouco provável de ser percorrida a pé em um dia. Pesquisas ainda continuam ocorrendo e arqueólogos teriam encontrado em 2019 um muro naquela distância, porém nada confirmado tratar-se de ruínas de Emaús.
Essas informações imprecisas nos indicam que Lucas não quis, portanto, fazer um relato histórico, uma reportagem jornalística sobre aquela aparição. O texto é muito mais uma catequese que Lucas oferece à sua comunidade, com orientações seguras de como encontrar-se com o Ressuscitado em situações adversas e para verificar a solidez dos ensinamentos recebidos até então. Lucas mostra que mesmo nos ambientes mais desafiadores, ali se faz presente o Ressuscitado com sua força transformadora.

Quando a esperança vai embora
Esse era o ambiente em que vivia a comunidade lucana. A obra é escrita por volta de 85 d.C. a uma comunidade miscigenada, com pessoas oriundas da Grécia, da Ásia Menor, com diferentes tendências - grupos de judeus, como os fariseus, e até seguidores de João Batista. Soma-se a isso tudo as perseguições do Império Romano. Lucas quer, portanto, assegurar à comunidade que, mesmo em meio a todas aquelas dificuldades, em situações de tamanho desânimo, Cristo Ressuscitado está presente.
Mas como descobrir, então, que Jesus está presente mesmo quando tudo parece dizer o contrário? Como descobrir que Jesus está vivo? É neste ambiente, para responder a esses anseios profundos de sua comunidade, que Lucas escreve seu Evangelho.
Dois discípulos estão voltando de Jerusalém a Emaús no primeiro dia da semana, o dia da Ressurreição. Um deles é Cléofas. O outro não tem o nome citado. Há várias tentativas de descobrir sua identidade. Há exegetas que sugerem ser uma mulher, talvez Maria de Cléofas, aquela que estava ao pé da cruz. Não sabemos. Outros dizem que o autor deixa a identidade em aberto justamente para que a comunidade se enxergue naquele caminho. o discípulo anônimo é uma metáfora da comunidade cristã.
Eles caminham tristes e desanimados. Esperavam o Messias triunfalista, que viria para suceder Davi no trono real, para restabelecer a paz em Israel e reconstruir o templo. Jesus não era esse tipo de messias. Os sonhos que tinham quando passaram a seguir Jesus tinha ido por água abaixo. Aquele em quem confiaram, em quem puseram suas esperanças, estava morto. Há três dias. Morto há três dias significava que a morte era real, um fato consumado.
Eles deixam Jerusalém. Deixam a missão, deixam a comunidade, deixam o projeto de Jesus. Abandonam aquele ideal. Voltam para sua terra. Voltam para a vida velha. De onde saíram antes de conhecer Jesus.

Assim também tem sido a vida de muitos. Ainda mais durante esta pandemia de Coronavírus. Quantos sonhos encerrados... planos de carreira, estudos, viagens, negócios, dinheiro que falta. São muitos os que tiveram que voltar a seus países, deixando pelo caminho os sonhos de fazer a vida no exterior. Há ainda os que nesses tempos tocaram diretamente a dor da perda, a morte de entes queridos, muitos deles sem poder velar os corpos devido à pandemia.
É exatamente neste contexto que Jesus se aproxima e caminha com os discípulos. Caminha conosco. Jesus se insere na vida e se interessa pela história, pelas dores de cada um. Jesus Ressuscitado assume a história de cada um e aparece, graças à condição gloriosa de seu corpo, das mais variadas formas: como jardineiro, como pedinte ou como viajante.


Nossa história à luz da lógica de Deus
Com delicadeza Ele ensina os discípulos a relerem a própria história à luz das Escrituras. Jesus não os condena, mas os adverte por não crerem e por demorarem a entender os fatos, os sinais. E os ajuda a fazerem aquele caminho. À luz da Palavra de Deus aquilo que é sinal de morte e desilusão é agora sinal de esperança.
Olhando para a Escritura, Jesus mostra a eles que tipo de projeto é o de Deus. A lógica de Deus é diferente da lógica do mundo. Por isso não a compreendemos. Nossos olhos continuam fixos no mundo. A lógica do mundo é a riqueza, o sucesso, o poder, os cálculos, as economias, o dinheiro... a lógica de Deus é o desapego, a solidariedade, a vida, o amor. Aos olhos do mundo a lógica de Deus é um fracasso. Quem age com Deus é um fraco, diz o mundo. Mas para Deus, são sinais de fortaleza, garantia de vida. E a vida oferecida como dom não se perde, mas gera vida plena.
Ao chegarem a Emaús, convidam Jesus a entrar, mesmo sem tê-lo reconhecido. Ali Jesus senta-se à mesa, toma o pão, abençoa-o, parte-o e o distribui a eles. Cinco verbos que revelam a Eucaristia celebrada desde as primeiras comunidades. Verbos eucarísticos. É na fração do pão que reconhecem Jesus diante deles. É na Eucaristia que a comunidade encontra o Ressuscitado.
As questões da comunidade lucana são também as nossas. Por que Jesus não surge para restaurar tudo? Por que Ele não aparece e acaba com esse vírus? Com o câncer? Com a corrupção e com as crises? Lucas responde: Essa não é a lógica de Deus. Não será em ações grandiosas que o encontraremos. Não será em grandes milagres, mas no simples gesto de partir o pão em comunidade.
Ele caminha conosco, no nosso ritmo, mas não o reconhecemos porque ainda não nascemos do alto, como Nicodemos. Ainda estamos fechados em nossos esquemas. É preciso percorrer o itinerário de Deus.

Eucaristia, presença do Ressuscitado
A liturgia da Igreja nos proporciona esse itinerário em cada celebração da Eucaristia. Peregrinar à igreja com nossa história e nossos anseios, ouvir a Palavra de Deus, dar graças, partir o pão e partir em missão. Eles voltam a Jerusalém. Voltam para testemunhar o encontro com o Ressuscitado. É preciso eucaristizar a realidade, o mundo.
Jesus desaparece da frente deles. Já não era mais necessária sua presença física. Os discípulos não tinham mais dúvidas de que era o Senhor e que Ele havia, de fato, ressuscitado.
A Eucaristia é o hoje da ressurreição de Cristo a favor do ser humano. A Eucaristia é o hoje de Cristo que nos ressuscita em nosso hoje, em nossa história, na história do mundo. E ao mesmo tempo o ser humano se une ao Ressuscitado pela Eucaristia. É um intercâmbio de dons.
Eucaristia é a ressurreição de Cristo em expansão, é vida para o mundo, antídoto contra a morte, geradora de vida. A Eucaristia é lugar de ressurreição, porque é lugar da presença do Ressuscitado.


Clique abaixo e ouça a linda música de padre João Carlos:


quinta-feira, 23 de abril de 2020

5ª feira da 2ª semana da Páscoa: "Quem crê no Filho tem a vida eterna"



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At 5,27-33
Jo 3, 31-36

Nesta quinta-feira da Segunda Semana da Páscoa a liturgia termina a leitura do capítulo 3 do evangelho segundo são João. Após ouvirmos o diálogo de Jesus com Nicodemos, hoje nos deparamos com o último testemunho de João Batista sobre Jesus. A perícope da liturgia não mostra o que originou aquele discurso de João. Na verdade, seus discípulos o questionam por que Jesus também estava batizando. O batismo era uma atividade feita por João, por isso o nome Batista, aquele que batiza. João dá, então, as suas palavras sobre Jesus, aquele que vem do alto e que está acima de todos, inclusive dele próprio.
O autor do quarto evangelho faz questão de escrever a origem de Jesus, mas de uma forma diferente de Mateus e de Lucas. Mateus escreve a judeus convertidos ao cristianismo. Por isso a preocupação do autor é mostrar que Jesus é o novo Moisés, da descendência de Abraão, filho de Davi. Assim, Mateus prova à comunidade que Jesus é o Messias esperado.
Lucas, entretanto, destina seu evangelho a uma comunidade com origens helenísticas, mostrando Jesus com características muito humanas, já que Ele é o filho de Adão.
João, por sua vez, escreve já no final do primeiro século, quando as perseguições aos cristãos começam a acontecer e o povo, um tanto quanto distante do tempo de Jesus, não se lembra quem Ele é. Por isso João afirma que Jesus vem do alto, vem de Deus, ele é o filho único de Deus.
O evangelista menciona categorias espaciais para falar de Jesus, que vem “do alto”, e a humanidade, que vem “da terra”. Há uma intenção existencial. Nenhuma palavra de alguém “da terra” se compara à de alguém que vem “do alto”. Jesus é, então, o único revelador do Pai.
“Da terra” e “do alto” referem-se a dimensões de finitude e infinitude. Finitude se relaciona a tudo que é terreno, da carne. A infinitude diz respeito às coisas celestes, ao espírito. O Batismo nos abre à infinitude, às coisas de Deus, já que Ele nos dá o dom da fé, que nos leva à vida eterna. É justamente pela fé naquele que vem do alto e que viu o Pai que podemos alcançar as coisas do alto, a vida eterna. Dessa forma, compreendemos que todo o agir de Cristo está em comunhão com o Pai.
A carta de São Paulo aos Colossenses exorta aquela comunidade a “buscar as coisas do alto. Vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col 3, 1-2). Esta é a condição para os batizados, é o compromisso e ao mesmo tempo a graça do banho batismal. Buscar as coisas do alto é dar dimensão divina, é divinizar, tudo aquilo que fazemos. Não se trata de isolar-se do mundo, mas estar no mundo para santifica-lo, para salvá-lo. É possível dizer: ter os pés no chão e olhar para o alto.
O cristão, pelo batismo, é chamado a morrer dia a dia para o pecado, para a vida velha. No versículo 8, Paulo orienta as coisas do mundo a serem abandonadas: ira, exaltação, maldade, blasfêmia, conversa indecente. Paulo chama essa atitude de “desvestir-se do homem velho” para revestir-se do “homem novo”, isto é, de “compaixão, bondade, humildade, mansidão”, suportando, perdoando... Mas sobretudo revestir-se da caridade, que é o “vínculo da perfeição”. Esta é a veste batismal, com a qual o neófito é revestido durante o rito do batismo.
Mas o trecho de hoje diz que “quem crê no Filho tem a vida eterna. Quem recusa crer no Filho não verá a vida”. Nas traduções para o italiano e para o inglês encontramos “quem desobedece o Filho não verá a vida”. Ou seja, a crença está diretamente ligada à obediência. Aquele que crê no Filho, obedece a Ele.
A grande promessa é a vida eterna, sobre a qual discutimos na terça-feira. A vida eterna é nossa meta, é a meta de todo cristão. O fechamento, a recusa a esta meta é também o fechamento a Deus, o fechamento a nós mesmos. O texto termina com uma advertência àqueles que, por outro lado, não aceitam Jesus. “A ira de Deus permanecerá sobre ele”. No mesmo trecho da carta aos Colossenses, Paulo esclarece o que causa a ira de Deus. O que causa a ira de Deus é o pecado contra seus filhos, como as injustiças, os maus desejos, a impureza, as paixões.
Tudo aquilo que ameaça outros filhos de Deus, nossos irmãos, provoca a ira de Deus, que nunca é levada a cabo, já que Deus jamais proporciona o mal, Deus jamais se vinga, pois Ele é amor e misericórdia, lento para a cólera. Amém.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

3ª FEIRA NA SEGUNDA SEMANA DA PÁSCOA "Como Moisés levantoou a serpente no deserto..." - 21/04/20


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At 4,32-37
Jo 3, 7-15

O trecho proposto pela liturgia nesta terça-feira na Segunda Semana de Páscoa é a continuação do diálogo entre Jesus e Nicodemos, cuja proclamação foi iniciada nesta segunda-feira. Vale recordar que provavelmente este diálogo fora posto por João em seu Evangelho como uma catequese para os que se preparavam para o Batismo. Os termos usados por Jesus são batismais, como “nascer de novo”, “nascer da água e do Espírito”, “o Espírito sopra onde quer”. É sempre útil recordar que os evangelistas selecionam episódios e aspectos da vida de Jesus que julgam úteis para o estabelecimento e desenvolvimento de suas comunidades.
Nicodemos era um judeu importante, um fariseu, profundo conhecedor das leis e dos costumes judaicos. Diferente de seus pares, que sempre confrontavam Jesus e queriam encontrar motivos para condená-lo, Nicodemos o reconhecia como mestre e até o admirava. Porém, tinha muita dificuldade de se desapegar de sua vida velha, de suas convicções, especialmente da lei para seguir Jesus.
Nicodemos, em outras palavras, mostrou-se incapaz de entrar no espírito da lei, a ponto de entender ao pé da letra os ensinamentos de Jesus sobre “nascer de novo”. Tinha também dificuldades de compreender ou de aceitar quando Jesus dizia que era preciso nascer da água e do Espírito”. E o questiona como aquelas coisas aconteceriam.
Percebemos uma conversa truncada. Nicodemos é incapaz de mudar de nível, de deixar de ver as coisas a partir de uma visão terrena e saltar para a dimensão do alto. É incapaz de se deixar guiar pela novidade trazida pelo Espírito Santo.

"És mestre em Israel e ignoras essas coisas"?
Jesus, por sua vez, devolve a pergunta e questiona como seria possível um mestre como Nicodemos não saber aquelas coisas. Jesus, ao citar o sopro do Espírito ou a necessidade de nascer da água e do Espírito, referia-se a passagens do Primeiro Testamento, em que Deus enviara seu Espírito para dar vida em situações onde a morte era iminente.
Um desses trechos é o capítulo 36 do profeta Ezequiel. Deus manda o profeta profetizar ao povo de Israel, que vivia na infidelidade ao Senhor. Adoravam outros deuses, feitos de metais ou de madeira, cultuavam ídolos, matavam os companheiros, oprimiam o órfão e a viúva. Deus, por mais que ameaçava castigar aquele povo de coração endurecido, sempre voltava atrás porque é misericordioso.
E Deus sempre busca oferecer meios para que o povo se arrependa e viva uma vida nova, ou seja, meios para que o povo chegue à salvação. Uma das mais belas e conhecidas passagens a esse respeito é Ez 36, 23-27. O Senhor derrama água pura sobre os corações de pedra, ou seja, seu próprio espírito santificador, e aqueles corações se converterão em corações de carne. O coração de carne é o coração que tem vida, é um coração que ama, é um coração de verdade.
Neste tempo de pandemia temos a oportunidade de recordar e entender de maneira muito concreta as palavras do papa Francisco em sua encíclica “Laudato si – sobre o cuidado da casa comum”. Podemos nos atentar para o mal que estávamos fazendo ao planeta, desconsiderando que tudo está interligado, ainda que oceanos nos separem. Sim, vivemos na mesma casa, a única grande casa do Criador, confiada por Ele a nossos cuidados. É tempo, então, de deixarmos o Espírito de Deus transformar nosso coração empedrado em um coração de carne, a fim de que não olhemos apenas para nosso conforto e para nossos lucros, mas para toda a criação, para todos os irmãos.
Após esse parêntese voltamos ao capítulo 3 de João e às palavras de Jesus, que agora passam a ser um discurso teológico sobre Ele mesmo e sua missão no mundo conferida pelo Pai. Jesus afirma dar testemunho daquilo que viu. Se voltarmos ao capítulo 1, o evangelista afirma que no princípio o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. E que ninguém jamais vira a Deus e que o Filho, que estava no seio do Pai, o deu a conhecer (Jo 1,1-3.18). Jesus é a testemunha do Pai. A fé nasce, portanto, do testemunho.
Do mesmo modo, a fé no Ressuscitado chega até nossos dias pelo testemunho dos apóstolos e das comunidades, isto é, da Igreja. Como podemos ver em Atos dos Apóstolos, que a liturgia nos apresenta durante todo o Tempo Pascal. “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor, e todos tinham grande aceitação” (At 4, 32-35).

À ressurreição chega-se pela cruz
“Como Moisés levantou a serpente no deserto, é necessário que seja levantado o Filho do Homem”, diz Jesus a Nicodemos, fazendo menção ao episódio do livro dos Números, quando Deus ordena a Moisés que faça uma serpente de bronze a fim de que os mordidos por serpentes fossem curados ao olharem para tal símbolo.
Jesus compara a serpente levantada por Moisés como a sua própria elevação no alto da cruz, um passo para subir de volta ao Pai. A cruz é um caminho fundamental para se chegar ao Pai. Não há ressurreição sem cruz. No capítulo 12 de são João, Jesus garante que quando for elevado, atrairá todos a Ele. Atraindo-nos a Ele, atrai-nos ao Pai. “Ninguém vai ao Pai senão por mim”.
Atrair-se por Jesus é atrair-se pelo amor e para o amor. Pela 1ª Carta de São João sabemos que Deus é amor. “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Na primeira leitura, como já vimos, encontramos o relato do amor testemunhado pelas primeiras comunidades cristãs. “Não havia necessitados entre eles”.
A comunidade brasileira Católicos em Dublin é um belo testemunho do Ressuscitado. Quantas campanhas são feitas para socorrer brasileiros em tratamento de câncer, mães solteiras, abortos evitados, comunidades na África. Gestos de solidariedade daqueles que fizeram a experiência do amor redentor de Cristo. Se a comunidade não dá esse tipo de testemunho, ela precisa nascer de novo.

"Todo aquele que crer, tenha nele a vida eterna"
O trecho de hoje termina com uma esperançosa promessa de Jesus: “que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna”. A vida eterna é a grande meta do cristão. É nosso horizonte, nossa luz no fim do túnel. Quando desanimamos na missão, podemos ter este consolo do próprio Senhor. As belas palavras na conclusão do rito de Unção dos Enfermos em leito de morte encorajam o morimbundo: “Deixa este mundo, alma cristã(...) que possas ver teu Redentor face-a-face e possas contemplar Deus pelos séculos dos séculos”.
O julgamento particular de cada indivíduo no momento da morte nos coloca diante de Jesus, o justo juiz, para colocar nossa vida em relação à vida de Cristo. O grande místico São João da Cruz nos explica o conteúdo do julgamento. “No entardecer de nossa vida, seremos julgados pelo amor”.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

SEGUNDA-FEIRA NA 2ª SEMANA DA PÁSCOA

Conferir:
At 4, 23-31
Jo 3, 1-8





Nesta segunda semana de Páscoa, a liturgia nos apresenta o capítulo 3 do Evangelho de São João, um dos primeiros episódios da atividade pública de Jesus descritos pelo quarto evangelho. Uma perícope que, portanto, não fala diretamente do Cristo Ressuscitado. Qual o sentido, então, da liturgia apresentar este texto durante toda a semana logo após as Oitavas de Páscoa?
Este é um texto que não fala do Cristo Ressuscitado, mas do ser humano ressuscitado, da humanidade nova, da nova criatura, ou seja, da vivência do Mistério Pascal. Podemos dizer que este é um texto mistagógico. Em outras palavras, este é um texto que nos fala da moral dos batizados, da experiência da vida nova, alcançada pelo batismo. Em um primeiro momento fala aos neófitos, ou seja, os recém-batizados na última Vigília Pascal, que são agora chamados a viver o mistério no qual foram introduzidos, mas também a nós, já batizados há algum tempo e que a cada ano renovamos nossas promessas batismais na mesma noite santa.
Podemos dizer, então, que o capítulo 3 de João nos apresenta como viver o cristianismo, ou então, o que é preciso para viver o cristianismo. É preciso nascer de novo, nascer do alto, guiados pelo Espírito Santo, que sopra onde quer. Feito este painel litúrgico, mergulhemos então no texto evangélico.

Um diálogo inusitado
Diz a perícope que Nicodemos era um judeu importante, mais que isso, era um fariseu. Os fariseus eram um grupo dentro do judaísmo. Um grupo com o qual Jesus teve muitos problemas, relatados nos quatro evangelhos. Eles eram grupos fieis à lei, faziam questão de que as leis fossem cumpridas à risca e não admitiam certas práticas de Jesus, como as curas e trabalhos em dia de sábado, por exemplo. Por seguirem a lei ao pé da letra, eles se consideravam melhores que os outros. Eram muito bons em tecer julgamentos.
Jesus chegou a chamá-los de sepulcros caiados, de hipócritas, de raça de víboras. Em Lucas 12,1 Jesus adverte para tomar cuidado com o fermento dos fariseus, isto é, a hipocrisia. No entanto, Nicodemos é um fariseu que vai a Jesus com boa intenção, ou pelo menos não se dirige a Jesus cinicamente, para pô-lo à prova, como seus pares costumavam fazê-lo. Ao contrário, chama Jesus de Rabi, palavra hebraica para Mestre. Reconhece Jesus como alguém que fala e vem de Deus. Reconhece ainda a veracidade dos sinais que Jesus operava.
Contudo, Nicodemos procura Jesus à noite. Este dado não parece ser um mero detalhe, uma vez que quando o evangelista menciona no capítulo 19 o fato de Nicodemos levar perfumes para ungir o corpo de Jesus a ser sepultado, o autor especifica que Nicodemos era aquele que havia procurado Jesus à noite. De acordo com os biblistas, aquele fariseu de boas intenções não queria se comprometer. Não queria ser mal visto pela sociedade judaica. Não queria ser questionado, não queria perder, talvez, o status, a posição que havia conquistado. Nicodemos, apesar de reconhecer Jesus como um homem de Deus, parece ter um coração ainda dividido. Não havia feito uma opção por Jesus como o Senhor, como o único enviado de Deus, como o Deus conosco.
Esta imagem fala muito ao nosso coração quando preferimos não opinar, não desagradar, não queremos perder nada. Evidentemente com certas pessoas, com aquelas que não querem se abrir, não adianta discutir, argumentar, estão fechadas. Mas nossa posição precisa ser dita com coragem, com clareza. Nossa posição sobre a vida, sobre os valores, sobre o que é fundamental, sobre o bem e o mal.
Vimos na semana passada que Pedro e João, diante do Sinédrio, ainda sob ameaça de prisão, não deixaram de denunciar o crime praticado pelas autoridades e de anunciar que aquele que mataram ressuscitara dos mortos e era em nome dele que agiam e curavam.
Nicodemos mostra ter informações corretas sobre Jesus, sobre seu ministério, até sobre sua origem e natureza. Mas a mensagem evangélica de hoje nos coloca que não basta parar no conhecimento científico sobre Jesus, não basta estudar teologias profundas se esta não me levar a uma adesão integral à proposta de vida trazida por Ele. Conhecer Jesus é ir mais além do que ter informações. É preciso dar um novo passo. Talvez ousar!
Nós podemos ter conhecimento intelectual sobre a Bíblia, ter estudado o Catecismo, ter doutorado em Teologia, louvar com a boca, pregar, rezar, conhecer os dogmas.
Não basta! Os curiosos e estudiosos também o fazem. Nicodemos parecia se aproximar de Jesus com certa curiosidade. O evangelista não cita a pergunta ou as perguntas que aquele fariseu teria feito a Jesus. Talvez não tenha feito nenhuma, pois Jesus conhece o homem por dentro (Jo 2,22).
Que passo dar então para conhecer Jesus? Qual a exigência para ser discípulo de Jesus, para segui-lo?

Nascer do alto
 “Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”, diz Jesus. Jesus não é conhecido apenas pelos livros. Para conhecer Jesus é preciso fazer uma experiência, como a de Tomé, que pode ver e tocar as marcas da Paixão, as marcas do amor redentor. É preciso fazer, em outras palavras, uma experiência pascal.
Este é o que chamamos na Igreja de mistagogia. É a proposta feita todo ano aos neófitos, àqueles que foram iniciados na fé cristã na noite pascal. Experienciar o mistério, viver o mistério ao qual foram introduzidos.
É preciso, então, revisitar nossas convicções, nossas crenças, e confrontá-las com a Palavra de Deus. Nicodemos não entendeu a palavra de Jesus, ou não quis entendê-la. Seu coração estava fechado nas leis, nas tradições, nas convicções que ele tinha. Não estava apegado ao essencial, mas ao exterior, a coisas secundárias. Por isso ele não avança no diálogo, não muda de nível, não avança para o nível do alto, continua pensando na limitação do pensamento humano. Tomou a palavra de Jesus ao pé da letra. “Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer”?
Jesus, sempre com paciência, vai explicar, ainda que na sequência do texto veremos que Nicodemos tem dificuldade de entender. Para compreender e seguir Jesus é preciso pensar como Deus, pensar as coisas de Deus, isto é, nascer da água e do Espírito Santo. Abrir-se ao Espírito Santo. Aqui temos uma referência clara ao Batismo. O sacramento nos insere nesta realidade de morrer para a vida antiga, os costumes antigos, o jeito de pensar antigo.
Mas como nós, já batizados há anos, há décadas, ou, por que nós batizados, que portamos já o Espírito Santo, ainda ficamos presos na vida velha? O convite do evangelista é para revisitar o nosso batismo. Há um canto de Quaresma que diz: “reacendei em nós a chama batismal”. Isto é, colocar-se livremente nas mãos de Deus. Deixar-se guiar pelo sopro livre do Espírito Santo, que como Jesus diz, sopra onde quer. O vento na Bíblia, o sopro, são imagens do Espírito de Deus.
Ninguém consegue parar o vento. Não se aprisiona o vento. Não se aprisiona Deus, que age conforme a necessidade, conforme a mudança de época, que sabe tirar o que precisamos de um tesouro com coisas novas e velhas.
O cristão é aquele que consegue acompanhar os rumos para onde o vento do Espírito está soprando. E a Bíblia diz que o sopro do Espírito é uma brisa leve, suave. Deus não está na agitação, no terremoto. Deus está na brisa suave, que é capaz de movimentar sem destruir. É como nesta quarentena, quando a gente sai para uma caminhada ou no quintal, ou na varanda para tomar um ar fresco, que renova nosso respirar.

Um novo Pentecostes
O papa São João 23, em 1959, intuiu que a Igreja precisava abrir suas janelas e portas para esta brisa suave do Espírito Santo, para o que ele chamou de aggiornamento, palavra italiana para atualização, update, no inglês. A igreja precisava se renovar. Ela já não estava respondendo com a dinamicidade do Espírito, às necessidades do mundo moderno. Na convocação do Concílio, Angelo Roncalli constata que o mundo vivia a mentalidade de Nicodemos, caracterizado por grande progresso material ao qual não corresponde o progresso moral.
 Ele convoca o Concílio Vaticano II, tido por muitos na época e ainda hoje, como um escândalo. Como a Igreja, que por muito tempo determinou como seriam as ações do mundo ocidental e por muito tempo foi dona de poderes absolutos e agiu com severidade, passaria agora a dialogar com o mundo, a propor, a apresentar ao mundo o projeto de Jesus? “Agora, pois, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade” (Discurso do papa João 23 na inauguração do Concílio).
É o que experimentamos nesse tempo de pandemia. O mundo estava centrado no material, na conquista, nas riquezas, na técnica. Nas coisas de baixo. O mundo precisava nascer do alto. Talvez estejamos em um tempo em que precisamos redescobrir o que seja nascer do alto. Como nascer do alto.
Aceitar as mudanças trazidas pelo Espírito não é apagar o passado, jogar o passado, a história no lixo, mas é revisitar a história, o passado, e dele aprender como melhorar, como evoluir, o que precisamos nos moldar à Palavra de Deus. Não é buscar a novidade por estar cansado do velho. É ser uma pessoa nova.
Em Berlin há vários monumentos e museus sobre o nazismo, o Muro de Berlim. Não são monumentos para honrar Hitler ou aquele sistema em vigor por várias décadas. Estão lá para lembrar que aquele foi um período da história, não para ser esquecido, mas para ensinar, para que nunca mais volte a acontecer.
A primeira leitura mostra como era a oração da comunidade cristã em suas origens. Uma comunidade que pedia o Espírito Santo para encorajar os apóstolos a testemunharem o Ressuscitado. O Espírito Santo é um dom do Pai e do Ressuscitado. Portanto deve ser pedido. Deve ser clamado. A comunidade não rezou para ser livre dos problemas, mas para que, com a força do Espírito, encontrasse a Paz do Ressuscitado, a coragem necessária para enfrentar as adversidades e anunciar o Evangelho. E teve seu pedido atendido com o que pode ser chamado de um “novo Pentecostes”.

domingo, 19 de abril de 2020

CATEQUESE LITÚRGICA – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – FESTA DA DIVINA MISERICÓRDIA

Caravaggio. A Incredulidade de São Tomé, 107 cm × 146 cm, c. 1601-1602.
Sanssouci Picture Gallery, Potsdam, Alemanha.

O 2º Domingo do Tempo Pascal é por instituição do papa São João Paulo II no ano 2000, a Festa da Divina Misericórdia. A devoção a Jesus Misericordioso começou na Polônia, a partir de uma visão da freira Faustina Kowalska. Entre várias revelações, em 1931 Jesus havia expressado a Faustina seu desejo de uma festa dedicada à sua divina misericórdia no primeiro domingo após a Páscoa.
O papa polonês não só atendeu o pedido de Jesus a sua conterrânea, como também elevou a freira polaca à glória dos altares, justamente no dia 30 de abril de 2000, quando, durante a missa de canonização, instituiu a nova festa. “É importante, então, que acolhamos inteiramente a mensagem que nos vem da palavra de Deus neste segundo Domingo de Páscoa, que de agora em diante na Igreja inteira tomará o nome de ‘Domingo da Divina Misericórdia’” (S. João Paulo II, Homilia na canonização de santa Faustina, 30/04/2000). O papa Wojtila foi beatificado e canonizado na festa por ele instituída, em 2011 e 2014, respectivamente.
De fato, misericórdia divina permeia toda a liturgia deste 2º Domingo da Páscoa. Na oração da coleta, o sacerdote diz: “Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do vosso povo na renovação da festa pascal...” “Dai graças ao Senhor porque Ele é bom, eterna é a sua misericórdia”, responde o Salmo 117 à 1ª leitura. Na 2ª leitura, São Pedro bendiz a “Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo...” Já o evangelho de são João apresenta a comunidade como instrumento da misericórdia divina, a partir da instituição do sacramento da Reconciliação. “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados”.
O tema central da liturgia deste domingo é, no entanto, a presença do Ressuscitado na comunidade reunida, que a partir da experiência de fé, passa a ser sinal de ressurreição, agindo no mundo como age o próprio Cristo. “Os que haviam se convertido eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações (...) Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e colocavam tudo em comum” (At 2, 42.44)
O Evangelho deste domingo é o mesmo que voltará a ser proclamado no coroamento do tempo Pascal, na solenidade de Pentecostes, em que se celebra a vinda do Espírito Santo sobre a comunidade. Para João, o Espírito Santo é dado pelo Ressuscitado na própria tarde de Páscoa, quando acontece a “nova criação”. O gesto de Jesus Ressuscitado, de soprar sobre os discípulos para conceder o Espírito vivificador, é o mesmo do Pai em Gn 2,7, em que sopra nas narinas do homem de barro, dando vida ao ser humano. O dia da Páscoa é, portanto, o Oitavo Dia, o dia da Nova Criação, quando o Ressuscitado, pelo Divino Espírito, faz novas todas as coisas. “Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e tudo será criado, e renovareis a face da terra”.
Na nova criação Deus nos faz pessoas novas, pessoas capazes de melhorar sempre, leva-nos à mudança de mentalidade, ao nascer de novo.

No primeiro dia da semana...
A primeira aparição do Ressuscitado aos discípulos se dá na tarde de Páscoa, do mesmo dia da Ressurreição, o primeiro da semana, que agora é o Dia do Senhor. Jesus já havia aparecido de manhã a Maria Madalena, que dá aos apóstolos a Boa Notícia. O grupo, porém, continua trancado por medo dos judeus.
Mais que portas de madeira, os discípulos estavam fechados no próprio coração. A porta fechada é imagem do coração humano aprisionado pelos medos da vida, incapaz de confiar no testemunho daqueles que já experimentaram o alegre encontro com Cristo Ressuscitado.
Nesses tempos de pandemia, estamos trancados em nossas casas. O medo que nos aprisiona não é mais dos judeus, mas de um vírus e de todas as consequências que ele nos traz. Medo do vírus, medo da doença, medo da morte, medo do desemprego, medo diante do futuro que virá após a pandemia.
Jesus, porém, entra. E se põe no meio deles. Jesus conhece as chaves que abre os corações. O Ressuscitado, cujo corpo não conhece mais barreiras, entra por meios que não esperamos, em corações que jamais imaginamos.
Jesus entra e se põe no meio. Jesus ocupa o Centro. Ele é o ponto de referência, é a pedra angular. Quando o Senhor está no meio, a comunidade tem segurança, pois o Ressuscitado é o ponto de equilíbrio para a comunidade cristã. “Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5). São Paulo lembra que “Ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja” (Col 1,18).
Ao se por no meio, Jesus saúda os discípulos com o Shalom judaico, a saudação da paz. Paz que não é ausência de problemas, mas a tranquilidade, a serenidade, a confiança necessária para superar os desafios, para enfrentar os medos e dificuldades. A harmonia para reconstruir relacionamentos feridos, para ser capaz de perdoar. A reconciliação é, portanto, um fruto da paz.
A paz, então, um dos grandes dons do Ressuscitado, encontrará lugar em um coração que é capaz de se abrir à novidade trazida por Cristo. Em outras palavras, o discípulo de Cristo Ressuscitado é portador da paz. São Francisco de Assis, em sua oração pede, “Senhor, fazei de mim, um instrumento de Vossa paz”. Francisco foi e ainda é um grande mensageiro da paz.

Não sejas incrédulo, mas crê...
A segunda parte da leitura de hoje é uma catequese de João sobre a fé do cristão. Tomé não crê no testemunho da comunidade. Precisa ver com os próprios olhos, tocar com as próprias mãos nas chagas do Crucificado-Ressuscitado. Ele não estava na comunidade quando Jesus apareceu. Tomé não percebe a comunidade como local da manifestação do Ressuscitado.
A quarentena por causa do Coronavírus tem nos feito redescobrir a presença do Ressuscitado na simplicidade dos gestos das pessoas. No testemunho, portanto. Distantes da vida comunitária, da Eucaristia, estamos nos dando conta de como era bom estar juntos e de como nos faz falta. Esta saudade da vida comunitária ao redor do altar é uma ação do próprio Cristo que nos faz perceber como a vida em comunidade nos ajuda a crescer. Temos descoberto outros meios de viver em comunidade, ainda que distantes, como pela tecnologia.
Estamos redescobrindo a presença do Ressuscitado também em uma pequena comunidade, por vezes menosprezada como lugar da manifestação de Jesus, a família. Estamos redescobrindo o valor da Igreja doméstica. Estamos redescobrindo a ação do Ressuscitado e sua presença na Sagrada Escritura.
Tomé precisou ver e, quem sabe, tocar nas chagas... Jesus, porém, tem paciência e o convida a tocá-lo. Jesus é assim. Respeita nossos limites. Respeita nosso tempo e nosso itinerário para crer. Cada um tem seu tempo e seu modo para chegar à fé verdadeira. Jesus entende, pois é misericordioso.
A bela obra de Michelangelo Caravaggio, “A incredulidade de Tomé” (1601-1602) mostra a beleza de Jesus segurando o braço de apóstolo incrédulo e o levando, ele mesmo, a tocar na chaga de seu lado aberto pela lança do soldado, donde jorraram sangue e água no alto da cruz. Se é preciso tomar pelo braço e conduzir a suas chagas de amor, o Senhor o fará. E o fará com a delicadeza de quem ama. As chagas, mais do que provas materiais da Ressurreição, são sinais do amor que deu a vida na cruz. Por isso Tomé crê, pois recorda o quanto o Senhor o amou.
Tomé precisou ver e tocar. O Senhor, no entanto, repreende-o. “Felizes os que creem sem terem visto”. A Ressurreição de Jesus vai além da materialidade. O Ressuscitado é encontrado na comunidade reunida, que ouve o ensinamento dos apóstolos, põe os dons em comum, parte o pão na Eucaristia, reza junto, faz com que não haja necessitados e é misericordiosa com os irmãos. É a comunidade modelo, relatada na 1ª leitura deste domingo (At 2, 42-45).

Sejamos, portanto, apóstolos, testemunhas do Ressuscitado, pois “pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não se mancha, nem murcha” (1Pd 1, 3b-5). Amém.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

17/04/20 - A APARIÇÃO DO RESSUSCITADO AOS DISCÍPULOS NA PESCARIA - REFLEXÃO LITÚRGICA DA SEXTA-FEIRA NAS OITAVAS DE PÁSCOA


Para consultar em sua Bíblia:

* At 4, 1-12
Jo 21, 1-14
Afresco na Catedral de Spoleto (segundo milagre)
  

Continuando a dinâmica das Oitavas de Páscoa, em que a liturgia apresenta as aparições do Ressuscitado, encontramos hoje o capítulo 21 de São João, que de acordo com exegetas é um apêndice, isto é, um texto que não pertencia ao original devido a diferenças linguísticas, de estilo e mesmo teológicas, mas que apresenta alguma semelhança literária. É um texto que, portanto, pode pertencer a um discípulo de João, acrescentado posteriormente ao restante da obra.
Percebe-se que se trata de um acréscimo também pois o evangelho de João já apresenta uma primeira conclusão em 20, 30-31. “Jesus fez, ainda, diante de seus discípulos, muitos outros sinais, que não se acham escritos neste livro. Esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”.
A perícope de hoje é uma rica catequese, com muitos símbolos, sobre a missão da comunidade cristã, da Igreja, portanto.
O autor apresenta sete discípulos que saem a pescar à noite, no Lago de Tiberíades, conhecido também como Mar da Galileia. Os discípulos, após a morte do Senhor, apesar de o evangelista informar que já haviam se encontrado com o Ressuscitado em outras duas ocasiões, voltam à sua atividade original, a pescaria. Tudo havia acabado. Voltam à sua vida cotidiana, talvez sem muitas expectativas.
Mas é justamente na simplicidade do cotidiano que o Ressuscitado se apresenta. Diz o texto que ali haviam sete discípulos. O número sete já é um grande sinal na numerologia bíblica, especialmente nos escritos joaninos. Sete é o número da perfeição, da totalidade. Deus cria o mundo em sete dias, por exemplo. Os dons do Espírito Santo são sete. No caso do nosso texto de hoje, sete discípulos, representam a Igreja inteira, a comunidade cristã toda, reunida, que sai para pescar.
A pesca, além da atividade profissional dos discípulos, foi uma das imagens usadas por Jesus quando os chamou a segui-lo. “De hoje em diante farei de vós pescadores de homens” (Mt 4,19). Em outra ocasião, diante do insucesso dos apóstolos numa pescaria, havia ordenado para avançarem “a águas mais profundas” (Lc 5,4).
Na noite relatada na perícope de hoje, a pescaria não foi boa. Uma noite das mais escuras, como muitas em que atravessamos. O mundo, neste tempo de pandemia, vive uma noite escura, não consegue ver um farol para voltar à costa. Também não consegue pescar. O barco parece estar à deriva. Assim como os discípulos, vivemos momentos de incertezas, de informações diversas e desencontradas.
No entanto, com o amanhecer vem Jesus, apresenta-se como um pedinte. “Jovens, acaso tendes algum peixe”? À resposta negativa do grupo, Ele orienta a mudar a estratégia, a jogar as redes à direita do barco. Jesus aponta uma nova direção, um novo jeito de pescar, uma nova atitude. Quando a pesca parece estar encerrada sem sucesso, ele dá uma nova oportunidade, uma nova chance de recomeçar. Ele traz luz, mostra o caminho. “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5).
Ainda que os discípulos não tivessem se dado conta de que era Jesus, eles seguem sua voz e a pesca tem resultado. Quando se ouve a voz de Jesus, a pesca é abundante. É aí que eles reconhecem Jesus. A partir da abundância da graça concedida. Jesus sempre garante alimento e bebida em abundância. Foi assim com o vinho em Caná. Foi assim com os pães e peixes multiplicados, cujas sobras encheram 12 cestos. Ele traz vida em abundância. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”.
O discípulo amado, aquele que tinha repousado sua cabeça no peito de Jesus, reconhece e diz aos companheiros: “É o Senhor”. Senhor é o título messiânico, título dado a Deus. Maria Madalena, a primeira testemunha, que também muito amou e foi amada pelo Mestre, usou a mesma expressão quando contou aos discípulos sobre o encontro que havia tido com o Ressuscitado na manhã pascal: “Vi o Senhor”. É a mesma profissão de fé que faz Tomé ao tocar as chagas no corpo ressuscitado: “Meu Senhor e meu Deus”. É a mesma profissão de fé que faz a Igreja em cada Eucaristia: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, e proclamamos a vossa ressurreição”.
Chamar Jesus de Senhor, portanto, é atitude de quem fez a experiência com o Ressuscitado. De quem tem a vida transformada pela luz trazida por Cristo.
Quando o grupo percebe ser Jesus, corre ao encontro do Mestre e têm de arrastar as redes, de tão cheias de peixes estavam. Jesus os espera para a refeição. Espera-os para a refeição pascal que Ele mesmo havia preparado. Pão e peixe sobre a brasa. Jesus pergunta novamente se têm alguma coisa. Agora eles têm. Diz o texto que têm 153 peixes grandes. E a rede não se rompe. O coração dos discípulos, portanto, da comunidade, está indiviso, é fiel ao Senhor. Quando a comunidade é fiel à Palavra do Senhor, a rede não se rompe e os peixes vêm. Quando, porém, a comunidade se corrompe, se divide, escandaliza, os peixes se perdem. Podemos ver aqui na Irlanda, os estragos causados pelos escândalos dos membros da Igreja anos atrás. A rede foi rompida, os peixes escaparam. A Igreja na Irlanda tenta consertar as redes e voltar a pescar ouvindo a voz do Senhor.
Há várias tentativas de explicar o porquê de 153 peixes. Santo Agostinho e São Gregório Magno falam em números triangulares de base 17. 10 + 7. 10 e 7 são números perfeitos na Bíblia. Indicam totalidade. São Jerônimo, por sua vez, diz que 153 era o número de espécies de peixes conhecidas na época. Tanto uma quanto outra teoria chegam ao mesmo ponto: a totalidade.  A Igreja existe para evangelizar a todos. A salvação trazida por Jesus é para todos. Todos têm direito de ouvir a Boa Notícia. Todos têm direito à esperança pascal trazida pelo Ressuscitado.


A refeição preparada pelo Ressuscitado às margens do lago, da qual participa a Igreja toda, representada pelos sete discípulos, é um claro sinal da Eucaristia, o lugar por excelência do encontro com o Ressuscitado. Quando a comunidade cristã ouve o convite do Ressuscitado “vinde comer” e se reúne para celebrar a Eucaristia, a grande refeição pascal, unida no amor, com corações indivisos, trazendo a ela novos membros, aí o Ressuscitado se faz verdadeiramente presente. Pela sua Palavra, encoraja os discípulos a pescar sempre. 

O versículo 14 diz que esta foi a terceira vez que Jesus se manifestou aos discípulos após a Ressurreição. O número três é na Bíblia número da perfeição. Penso que podemos entender que assim nos encontramos eficazmente com o Ressuscitado: ouvindo sua Palavra, alimentando-nos em sua mesa e partindo em missão.
Vivemos um tempo particular devido à pandemia do novo Cornavírus, em que estamos impedidos de nos reunir ao redor da mesa da Eucaristia. É tempo, então, de redescobrir outros lugares do encontro com o Ressuscitado, como a meditação da Palavra de Deus no recolhimento de casa, a oração em família, o sentar-se ao redor da mesa com a família para partilhar o alimento e a vida, a conversa. É tempo de reaprender a conviver, a dialogar, a ter paciência com o outro. É tempo de se fazer próximo, mesmo estando distante. Um telefonema, uma chamada de vídeo, e a esperança do Ressuscitado atingirá a outros. Atitudes eucarísticas... atitudes pascais!