Conferir:
At 2,14a.36-41
Salmo 23(22)
1Pd 2,20-25
Jo 10,1-10
A liturgia
do 4º Domingo da Páscoa todos os anos se desenvolve em torno da figura do
Pastor, que no capítulo 10 de São João, Jesus identifica como sendo ele próprio.
“Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11). Assim sendo, o discurso sobre o Bom Pastor é
dividido nos três anos litúrgicos A, B e C. Neste ano A é proposto o início de
tal discurso.
Nos
primeiros versículos, Jesus não chega a se identificar como o Bom Pastor, mas
dá indicações sobre quem é e quem não é pastor, e se autointitula como a porta
das ovelhas, pela qual deve-se entrar para ser salvo. Dessa forma,
identificamos duas parábolas na perícope selecionada para este Domingo.
Jesus diz
que o pastor entra no redil das ovelhas pela porta, as ovelhas ouvem sua voz e
a conhecem, pois o pastor as chama pelo nome. Ao sair para o dia de trabalho, o
pastor caminha à frente das ovelhas, guiando-as por caminhos seguros, onde
encontrarão as condições para a vida plena.
Ao
contrário, os ladrões e assaltantes não entram pela porta do redil, mas
procuram as brechas para se infiltrar sem serem notados, a fim de roubar e matar
as ovelhas. Jesus está dizendo a respeito dos fariseus e líderes judeus de seu
tempo, com os quais ele havia discutido no capítulo anterior, após curar o cego de nascença. “Se fôsseis cegos, não teríeis
pecado; mas dizeis: ‘Nós vemos!’ Vosso pecado permanece” (Jo 9,41). Diante do
legalismo e hipocrisia de tais grupos, as ovelhas fogem. Procuram, ao
contrário, Jesus, pois encontram nele Aquele que dá vida em abundância.
Após dizer
que o pastor entra pela porta do aprisco, Jesus afirma “Eu sou a porta das
ovelhas” (Jo 10,7). Acabamos de ouvir Jesus declarar que o pastor entra
necessariamente pela porta. Quem entra por outros atalhos não é pastor. Jesus
está dizendo que o pastor só é legítimo se passar por Ele. Passar por Jesus é a
condição para se chegar às ovelhas. Essa é a condição para confiar a Simão
Pedro o pastoreio de seu rebanho. “Simão, tu me amas?” (Jo 21,15-17) é a
pergunta na beira do Mar da Galileia. Após a tríplice resposta do apóstolo é
que o Senhor lhe confia seu povo. “Apascenta as minhas ovelhas”. Só declarando a perfeição do seu amor ao Mestre (três vezes) e após ouvir que o
seguimento deverá ser até à morte, é que Pedro recebe o encargo de pastor. O
pastor deve, por amor ao Mestre, aceitar ir até o fim, dar a vida pelas ovelhas.
Ao se
identificar como pastor, Jesus usa uma expressão retomada várias vezes por São
João em seu evangelho. “Eu sou”. “Eu sou a porta”. O autor do quarto evangelho
apresenta Jesus afirmando “Eu sou a porta... eu sou o bom pastor... eu sou o
pão da vida... eu sou a luz do mundo... eu sou a videira... eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida... eu sou a Ressurreição e a Vida”. “Eu sou” foi a resposta
dada por Deus quando Moisés pergunta qual o nome que ele deveria dizer ao povo
ao ser perguntado sobre a identidade de Deus.
Ao apresentar Jesus como “Eu sou a porta”, o autor do quarto evangelho quer
mostrar mais uma vez à sua comunidade e aos povos de todo tempo que aquele
Jesus é o verdadeiro Messias esperado por Israel, o Filho de Deus, o Eu sou.
Assim, Jesus é o verdadeiro Pastor, as ovelhas pertencem a Ele, ouvem sua voz e o seguem.
O papa
emérito Bento XVI esclarece em sua trilogia “Jesus de Nazaré” o significado
desta pertença. Ratzinger diz que a pertença das ovelhas ao pastor é uma
pertença interior, muito mais profunda que possuir algo. Trata-se de
conhecer-se mutuamente. Assim como os filhos não são propriedades dos pais, mas
pertencem aos pais. Ou como os esposos, que não se possuem, mas pertencem um ao
outro. A pertença requer responsabilidade, não domínio. O pastor não está lá
para fazer riqueza com as ovelhas, nem para explorar as ovelhas, mas para
cuidar das ovelhas, para zelar pela saúde, pela vida delas.
O pastoreio
que Jesus assume e incumbe seus seguidores é, portanto, diferente do pastoreio
dos líderes e governantes de Israel, denunciados pelos profetas, como Jeremias
e Ezequiel. Entender a imagem do pastor no Antigo Testamento é a chave para
entender a construção de João em seu evangelho. João escreve a partir da imagem
de pastor reprovada pelos profetas. Vale a pena voltar a ela.
Em Ezequiel
34, o profeta escreve ao povo exilado na Babilônia. Nos primeiros versículos
temos a reprovação aos chefes do povo pelos crimes cometidos. “Ai dos pastores
de Israel que se apascentam a si mesmos... Visto que meu rebanho é objeto de
saque e serviu de presa a todos os animais do campo, por não ter pastor, pois
que os meus pastores não se preocupam com o meu rebanho”.
Por conta
de não fazer o que lhes compete, o profeta afirma que Deus vai lhes tirar o
pastoreio e Ele próprio será o pastor do seu povo. Ele será um pastor que reconduzirá
as ovelhas à sua terra, a pastagens irrigadas, onde elas poderão repousar; Ele
será um pastor a buscar a ovelha perdida e a cuidar da machucada. (Ez 34,
11ss). Deus promete, então, um pastor a seu povo. Um pastor capaz de reconduzir
Israel à paz e à justiça.
Brota no
povo, portanto, a esperança de alguém que o governe para a vida em abundância,
que não mais o explore, que não mais tire proveito do povo. Israel espera a
vinda de um Messias. Espera que um dia surja um pastor como Deus. Esse é o esboço
para o capítulo 10 do evangelho de São João, que apresenta Jesus como o
cumprimento da expectativa do povo de Israel. Ele mesmo é o Pastor. “Eu sou o
bom pastor”. Jesus é, portanto, o Messias esperado. Ele dá a paz na tarde
pascal e também se denomina ser a Verdade. Ele tem, como podemos notar, os
atributos do Messias, aquele que traz a paz e a justiça (verdade).
São Pedro,
na segunda leitura, exorta a voltarmos nossa vida ao verdadeiro pastor. “Mortos
para o pecado, vivamos para a justiça... andáveis como ovelhas desgarradas, mas
voltastes ao pastor e guarda de nossas vidas” (1Pd 2,24-25).
Cabe duas
perguntas para nós a partir da reflexão desta perícope do Bom Pastor. Como estão
os pastores em nosso tempo? Entendemos como pastores o papa, os bispos e os
padres, mas também cada pai e mãe de família, cada líder de comunidade, de
pastorais e movimentos e cada líder, ainda que de um grupo pequeno de pessoas
na sociedade.
Os governantes
também devem ser pastores, como destacado pelo profeta Ezequiel. Infelizmente,
a experiência com governantes no Brasil tem sido muito semelhante às do
povo da Bíblia: pastores que se pastoreiam a si próprios, que portanto, não são
pastores, mas mercenários, assaltantes, que maltratam e machucam as ovelhas.
Não nos
esqueçamos, para chegar às ovelhas precisamos passar pela porta, que é Jesus.
Esta é justamente a denúncia de Jesus no Evangelho de hoje: os líderes judeus
usavam o nome de Deus em benefício próprio, hipocritamente, para explorar o
povo. Aproximavam-se do povo de forma abusiva e, portanto, ilegítima. Em outras palavras, não entram pela porta. Deus não autoriza seus pastores a explorar o povo.
Quando
governantes e líderes religiosos, ou mesmo qualquer um de nós abusamos das
ovelhas, não as tratamos como Jesus as trata, causa-se graves danos ao rebanho.
O rebanho se assusta e foge, porque não os reconhece como pastores, pois o
pastor vai sempre conduzir para a liberdade, para a segurança, representadas no
Evangelho pelas verdes pastagens, para as águas repousantes, ou ainda, pela
mesa posta bem à frente do inimigo, mas que pela proximidade do pastor, nenhum
mal vai acontecer.
A outra
pergunta é semelhante: como, então, identificar os verdadeiros pastores?
Primeiramente,
pela coerência com o que Jesus ensina sobre pastoreio, a partir dos evangelhos. Também
pela coerência entre fala e atitudes. Também identificamos ser um verdadeiro
pastor quando conduz as ovelhas para a vida em abundância, com qualidade, com
dignidade, quando é um servidor da vida. O verdadeiro pastor se mostra, ainda, próximo das ovelhas. Como diz o papa Francisco, o pastor tem o cheiro das
ovelhas, isto é, tem contato e conhece suas ovelhas, respeita suas individualidades
e suas características. Ou seja, as chama pelo nome.
Assim, da
mesma forma que o pastor deve passar pela porta, que é Jesus, para ter acesso
às ovelhas, o rebanho só encontrará a verdadeira liberdade e a vida em
plenitude ao passar pela porta do curral, que é Jesus ressuscitado. Portanto, Jesus é, Ele mesmo, a Porta, o
Pastor e o Ccordeiro do sacrifício, que deu a vida livremente para que todos tivessem vida. Em
Jesus, a salvação se realiza.